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A parte dos investimentos que não se liga a esta
relação narcísica e identificatória com o outro retorna
de maneira dilacerante para a economia libidinal, pro-
vocando um abalo do narcisismo do eu. Aqui, salienta
Douville (2004): “é então o corpo ele mesmo que é atin-
gido pela turbulência dos remanejamentos narcísicos e
que, longe de se equivaler à imagem ideal do semelhante,
torna-se este peso de real que insiste” (p.15). Daí advém,
segundo o autor, uma angústia de despersonalização que
leva ao encontro “com a matéria bruta do corporal, com
sua substância mesma” (Douville, 2004, p.16).
Ora, o que se entrevê no comportamento automu-
tilatório é, arriscamos dizer, uma tentativa de se entrar
em contato com esta matéria bruta para dela se apro-
priar, ou seja, para tentar acessar o sentimento da “carne
viva” que possa conduzir, em um segundo tempo, a certa
assunção do corpo como unidade e não somente como
corpo informe. Os cortes oferecem a via da cinesia, da
sensação de propriedade de um corpo, de corporeidade
e de contenção.
Tal perspectiva sobre o ato automutilatório é tam-
bém desenvolvida por Le Breton (2006), segundo quem
estas adolescentes, ao se infligirem a dor, retomam o
controle de um afeto destrutivo que lhes atravessa, bus-
cando um modo de domínio sobre uma situação que
lhes escapa totalmente ao controle. O ataque ao próprio
corpo é geralmente precedido de um sentimento de de-
sespero e de desorientação, “como uma forma de hemor-
ragia de sofrimento que destrói os limites de si” (p.2).
O corte vem, assim, segundo o autor como tentativa de
conferir uma restauração brutal das fronteiras perdidas
do corpo, como forma de diminuir o sentimento de ver-
tigem e promover a sensação de vida. A concepção de
vertigem alude a esta impossibilidade de domínio sobre
as intensidades experimentadas, sendo o ato automuti-
latório tentativa de alguma ligação do desespero expe-
rimentado. Além disso, podemos pensar que se trata,
também, de esboçar uma tentativa de resposta ali onde
há o desencontro com o outro, ali onde o chamado ao
outro não encontra uma resposta (Hachet, 2015).
Le Breton (2006) descreve o caso de uma paciente
que, com loquacidade, demonstra o imperativo de não
se entregar ao sofrimento, mas, sim, de combatê-lo. Ela
explica que se corta com uma lâmina de barbear, mas
que interrompe o ato quando a dor começa a ficar in-
tensa, esforçando-se por se manter em uma linha que,
apesar de tênue, a faz sentir-se enfim “viva”. Afirma o
autor que “as marcas corporais são alvas identitários, de
forma a inscrever os limites através da pele, e não so-
mente como metáforas” (p.2). Assim, a pesquisa de Le
Breton (2006) permite-nos compreender que o alvo da
automutilação não é o sofrimento, mas poder alcançar,
por meio deste ato, certo sentimento de existir. O ataque
ao corpo, segundo o autor, se aproxima da compreensão
que podemos ter sobre as condutas de risco, precedido
de um sentimento de turbilhão, um modo de hemorra-
gia do sofrimento que rompe com os limites de si. Há
uma lógica interna neste ato que indica uma busca de
apaziguamento, e não de destruição pessoal:
“O corte no corpo é uma forma de tentar barrar
o sentimento de colapso. O choque de realidade que ele
induz, a dor consentida, o sangue que corre religa os
fragmentos esparsos de si mesmo. Permite que haja uma
reintegração e alimenta o sentimento de se estar viva, de
restabelecimento das fronteiras de si” (Le Breton, 2006,
p.5).
Uma jovem de 15 anos contava, enquanto se en-
contrava em processo psicoterápico com uma das auto-
ras do presente artigo, que cortava o braço com cacos
AutomutilAção nA AdolescênciA - rAsurAs nA experiênciA de AlteridAde
Psicogente, 20 (38): pp. 353-367. Julio-Diciembre, 2017. Universidad Simón Bolívar. Barranquilla, Colombia. ISSN 0124-0137 EISSN 2027-212X
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